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Pausas genuínas

  • Foto do escritor: Breno Xis
    Breno Xis
  • 30 de jun.
  • 6 min de leitura

Atualizado: 1 de jul.

Como distinguir a pausa genuína do mero tempo livre? E por que a pausa genuína, diferentemente do tempo livre, oferece liberação de padrões mentais e uma maior conscienciosidade da natureza da identidade e das identificações?


O símbolo de pausa consiste em duas barras verticais.
O símbolo de pausa consiste em duas barras verticais. Diferente do botão de stop, que sugere um fim definitivo, ou do play, que implica movimento direcionado, as duas linhas verticais criam um espaço - um intervalo livre dos extremos do ser e do não-ser.

Nós podemos ter alguma dificuldade em parar. Não estou falando desses tempos livres [1]  que tomamos como pausa. Falo de um parar que é uma pausa genuína. Por exemplo, não consegui parar para escrever uma newsletter faz meses. Peço desculpas pela interrupção, estava completamente dedicado a escrever minha dissertação de mestrado. Notem que esse parar para não é a mesma coisa que parar. Eu não consegui parar por fazer outra ação. Esse parar não é uma pausa genuína na medida em que eu não paro de verdade. É um parar instrumentalizado, próximo do conceito de tempo livre, no qual o livre é logo preenchido, como se o valor dele fosse esse, servir para outra coisa.


O tempo livre, diferentemente da pausa genuína, não tem valor em si mesmo. Ele está sempre a serviço de algo, nem que seja descansar. Mas descansar pode ser uma atividade. Todas vocês devem ter experimentado um tempo livre imediatamente preenchido por um passeio, por uma leitura, por uma praia. São atividades, muitas vezes agradáveis e necessárias para uma vida humana rica, mas ainda assim seguem atividades e esforços. Para muitas pessoas ler é um ato de esforço, uma aplicação da mente. A mente não está exatamente descansando. O mesmo vale para um passeio. Todas sabem como um passeio pode ser demandante. Mesmo relaxar requer um índice de esforço. Portanto, defendo que o tempo livre deve ser diferenciado da pausa genuína. São coisas diferentes que podem dialogar e, sem dúvida, uma pode escorregar na outra, mas em uma sociedade onde tudo deve ser produtivo, até mesmo nossas horas de descanso, parece-me mais honesto concluir que pausas genuínas são raras e, se ocorrem espontaneamente, na forma de momentos naturais de uma mente livre de esforço e ocupação, tendem a passar inteiramente despercebidas ou, se notadas, percebidas com estranhamento e até mesmo aversão


Se, por um lado, a pausa ordinária, a qual associo ao conceito de tempo livre, é no fundo ainda uma atividade, por outro, a pausa genuína é uma ausência de atividade ou, pelo menos, uma redução significativa das atividades de manutenção da personalidade e dos jogos que essa personalidade faz uso para se manter. Na pausa genuína o eu tem uma chance de retornar para a base do ser, uma experiência livre de todas as atividades e demandas habituais que o eu identifica como sendo a si. Tal pausa vai, normalmente, causar estranhamento ao eu desacostumado a parar de verdade. Livre das camadas de costumes, o eu não precisa funcionar de modo convencional, o que para algumas pessoas é um choque, descobrir por debaixo do eu qualidades fundamentais desconhecidas sem as quais o eu sequer poderia funcionar. Diferentemente da pausa ordinária do tempo livre, a pausa genuína é uma entrega: deixa-se o hábito para repousar em algo valioso por não ser uma transação. Do ponto de vista do sujeito isso é como tirar todas as peças de roupa, soltar os instrumentos que carregamos e descansar o desejo de ser isso ou aquilo. É uma cessação da luta, da agonia, da insatisfação do eu. É como se o eu voltasse para casa, um espaço nos quais os vícios da subjetividade se dissolvem, incluindo a mente condicionada pela agenda do mundo.


Diferentemente da pausa ordinária do tempo livre, a pausa genuína é uma entrega: deixa-se o hábito para repousar em algo valioso por não ser uma transação.

A pausa genuína, vista pelo lado dela, é, ao menos para o meu gosto discursivo, mais bem caracterizada por certas ausências. Ela não é uma coisa que possa ser agarrada. Ela não é uma coisa que possa ser precisamente definida. Ela não é uma palavra, ainda que palavras possam nascer dela, falar dela e dissolver-se nela. Ela é uma ausência de tentar, uma ausência de buscar, uma ausência de ter. Está mais para uma abertura atualizante, uma não-fixação. Não é algo que o pensamento possa enquadrar. Está menos para entender e mais para desfrutar. É algo que se sente como uma ausência de resistência. Ela não serve. No momento em que repousamos nessa qualidade que o termo pausa genuína rotula, nós não servimos para nada, pois servir é uma história que pode ser útil, algo que nos ajuda a lidar com o mundo e a conectar as coisas de um certo jeito, mas nada disso é necessário ou tem qualquer serventia em uma pausa genuína. Falando assim, parece algo extraordinário, mas não. Trata-se de uma coisa muito simples e comum. E por isso não falamos muito sobre ela. Não queremos mistificar aquilo em nós que é livre de mistificação.


Do ponto de vista de quem experimenta essa pausa genuína é como se os estados alterados da mente viessem todos para um único lugar, sua base, descansar. E esse é exatamente um dos valores da experiência de pausa genuína: ela é uma liberação. Aquilo que tomamos como inescapável, traços neuróticos de personalidade cristalizada, hábitos violentos de manutenção de si e do outro, forças motrizes da dor e da angústia que o eu sofre e inflige, todos se acalmam e descansam neste espaço desobstruído. Ao sair dele, voltamos não apenas mais leves e mais bem nutridos, mas mais conscientes do que tem estruturado nossa identidade e de que esse material pode ser atualizado, desfixado, liberado. Uma pausa genuína é um descanso da atividade do eu, mas também o local de onde aquilo que chamamos de eu nasce. Uma vez que ganhamos consciência desse espaço ganhamos confiança de que o eu é maleável, não estando inscrito em pedra, mas sendo mais como uma veste semitransparente que trajamos aqui e ali. Com a intimidade, podemos deixar algumas vestes para lá, já que nos habituamos a uma certa nudez, muito honesta, que vivenciamos numa pausa genuína. Equaciono essa nudez com a ausência de jogos de manutenção da personalidade. A característica de honestidade é a consciência do que surge como meras aparências desprovidas de essência ou de eu próprio [2].


Uma pausa genuína é um descanso da atividade do eu, mas também o local de onde aquilo que chamamos de eu nasce. Uma vez que ganhamos consciência desse espaço ganhamos confiança de que o eu é maleável...

O perigo de escrever sobre qualidades é a coisificação delas. Transformar a pausa genuína em algo que deve ser agarrado como mais uma coisa que desejamos sentir é criar um obstáculo para uma experiência bastante simples, descomplicada e comum. Uma pausa genuína só é extraordinária em contraste com pausas ditas ordinárias. Uma pausa genuína, pelo lado dela, não é nada extraordinária. Ela é comum, na medida em que está sempre disponível para qualquer uma de nós. Trata-se de algo que é reconhecido como sempre presente. Um tipo de refúgio sem paredes, sem cadeados, sem histórias sobre si mesmo. Portanto, ao falar sobre a pausa genuína, o fazemos porque precisamos de um apontamento, um mapa feito de palavras que deve ser abandonado. Ainda que possamos usar abordagens do caminho do (menor) esforço para nos aproximar dela, nenhuma dessas abordagens é levada para ela. Ela é precisamente uma ausência de métodos. Uma vez que chegamos em casa, não precisamos mais deles.


Agora irei descansar de escrever este texto. Para tanto, logo mais, usarei uma simples sílaba (Ah), seguida de um ponto final. Uma pausa genuína estará disponível depois dele. A questão para mim foi, ao longo dos anos, notar a presença espontânea dela. Foi despertar para o fato de que não sou eu criando uma pausa genuína. O eu não cria pausas genuínas. Pausas genuínas são o abandono do eu. Então, aqui, o eu que escreve é o eu a ser abandonado. Ele vai se aproximando de seu fim. Continua a escrever porque talvez ache que tenha que existir. Talvez tenha medo de que a pausa genuína seja como a morte. Se é assim, o convite é “venha e veja”. O eu tem dessas coisas: quer relaxar, tem saudade da simplicidade, mas teme perder-se de si na ausência das coisas que o exigem. Deve ser por isso que essas palavras ainda estão aqui, uma depois da outra. Sou eu tentando me manter. Mas quem precisa disso quando posso me soltar? Portanto, preparo-me para o ponto final do eu que escreve estas palavras. Sua mensagem está escrita. Obrigado eu que escreve. Obrigado por seu esforço. Um último momento para agradecer também a você que veio até aqui e que considera essas palavras e, mais exatamente, ao que se referem. Vou-me embora. Um abraço. Ah.


[1] Devo a Byung-chul Han a crítica da noção de tempo livre, exposta no livro Vita contemplativa: ou sobre a inatividade (Vozes, 2023).

[2] A noção de eu próprio (sânsc. svabhava), referente à qualidade de algo que existiria por si mesmo e em plena autonomia, é questionada pelo Budismo madhyamaka. A crítica madhyamaka a essa noção de existência intrínsica é crucial em sua terapêutica do sofrimento e pedagogia de liberação.

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Breno Xis

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