Newsletter #3: Notas sobre a clareza espontânea da mente
- Breno Xis
- há 2 dias
- 5 min de leitura
Atualizado: há 5 horas

Saudações do meu Estúdio de Autocuradoria! Na edição de hoje, parto da vigilância no contexto de shamata para explorar a qualidade impessoal de ‘notar’, esse ‘relâmpago’ refrescante que nenhuma fixação ou distração consegue deter.
Um lembrete: Este boletim é gratuito, mas demanda horas de trabalho para escrever: ler, conversar, pesquisar, ir ao centro de prática, sentar com a mente todos os dias, e, claro, integrar todas essas atividades no contexto do ritmo da vida familiar e em meio a um doutorado.
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B.
No início, era a prática de vigilância
Quando comecei a praticar o calmo permanecer de shamata, estava muito focado em manter a vigilância do objeto de atenção, tentando evitar distrações. Com o tempo, comecei a perceber que o ato de notar é igualmente importante, e não apenas para me levar de volta ao meu objeto quando eu me distraía.
Na prática de shamata, focamos a atenção em um objeto simples, como as sensações da respiração, com a intenção de mantê-lo como único foco. Sempre que a mente divaga, ela é gentilmente trazida de volta ao ponto de foco. Com isso aprendemos a reconhecer o envolvimento com conteúdos fugazes da mente. Para essa atividade, a vigilância é essencial: é ela que detecta que perdemos o nosso foco e estamos envolvidos com outros conteúdos. Assim, no começo do meu percurso, valorizei uma qualidade de vigilância introspectiva, silenciosa e descontraída.
O que estou chamando de 'vigilância' é uma atenção contínua e sem esquecimento ao objeto. Para Asanga, um dos maiores expoentes do budismo Mahayana, a função dessa atenção é a não-distração. Portanto, trata-se de um fluxo ininterrupto de atenção perante o objeto. Bom, para mim, isso não é exatamente fácil. Então, ao praticar shamata, posso experimentar uma atenção disfuncional, sujeita a muitas distrações e, portanto, nem um pouco contínua ou estável.
Dar conta da minha situação não me deixou feliz, mas segui em frente praticando medidas de vigilância. Foi assim que parei de brigar com a distração e naturalizei o ato de voltar ao meu objeto com a maior boa vontade, sem emitir um piu. Creio que foi essa atitude pacificada que me permitiu notar a mecânica básica da prática de shamata: foco → distração → notar → retorno ao foco. Depois de ver tantas e tantas vezes cada uma dessas etapas, elas começaram a se mostrar mais detalhadamente. Por exemplo, descobri que foco tem a ver com memória, descontração e arejamento. Por sua vez, as distrações se abriram como verdadeiras enciclopédias nas quais há verbetes nos campos da estética, da epistemologia, metafísica, da ética, da lógica e, ao fim, da existência. Elas deixaram de ser distrações e se transformaram em espelhos, trampolins e manifestações de uma mente maior que elas.
Com o tempo percebi que o ato de notar é importante, e não apenas para me levar de volta ao meu objeto.

A descoberta de notar o notar
Em meio a todos esses achados, que nem sempre são anunciados como possíveis no contexto da prática de shamata, comecei a notar algo muito frequente, sem o qual a própria prática seria impossível: o próprio ato de notar. Tive o privilégio de estudar e receber instruções orais diretas da monja Ani Zamba Chozon e guardei comigo uma analogia que ela fazia relacionando a atenção ou mais especificamente a retomada da atenção com uma faca que está sendo amolada gradualmente. Ela dizia que ao notar que a atenção estava envolvida com outros focos isso era como amolar a mente no amolador da clareza. Essa imagem fez todo sentido para mim e eu passei a gostar de notar o que chamamos de distrações. Considero essa atitude, apreciar as chamadas distrações e não me impacientar ao notar o hábito de vaguear e me dispersar em ideações e fantasias, a condição para que eu começasse a notar o notar como uma experiência nada banal. Notar é importante, sim, para me levar de volta para meu objeto, mas o ato de notar em si é algo extraordinário de ser apreciado.
Uma das primeiras inferências surgidas de notar o notar foi que era impossível que eu estivesse fazendo a ação de notar. É claro, dizemos: “Eu estava meditando quando notei uma distração”. No entanto, ao menos no meu caso, essa forma de dizer é passível de problematização. Na verdade, eu estava completamente absorvido pela distração, esquecido do meu objeto, imerso oniricamente em um devaneio, quando, subitamente — flash! —, um relâmpago de clareza irrompia e iluminava a estrutura inteira, a estrutura cíclica inteira, como um instante muito afiado de clareza liberativa.
A qualidade notante: notas sobre a clareza espontânea
Essa “qualidade notante” da mente, uma ocorrência para mim impessoal, aparentemente distinta da mente conceitual na qual eu estava fixado, não é algo que caiba muito bem em palavras pois não parece ter ou ser um ponto de referência. Ela é simplesmente uma qualidade contínua de clareza espontânea, não fixada e imaculada da mente. Creio que James Low (Sparks, 2017) refere-se a ela quando escreve: A única coisa que não muda nunca aparece como algo. É a consciência inseparável do espaço”.
Para mim essa “consciência notante” trouxe conscienciosidade e liberação. Sempre que ela ocorre, tenho uma experiência de refrescância e vastidão espacial. Algo notável é que até hoje nenhuma percepção na qual esteja fixado, nenhum sono dogmático profundo, nenhuma fantasia exuberante ou (des)encanto magnético foi jamais capaz de detê-la. Deve ser por isso que, ao refletir sobre ela, recordo estas palavras contidas no Grande Tantra de Vajrasattva:
"A luz do sol irrompe numa luminosidade
De total autoluminescência.
Ela se une ao fim do céu.
Não admite divisões ou extensões.
Brilha dentro da consciência da equanimidade."
Dessa maneira, uma simples prática de atenção plena no contexto de shamata me apresentou ao que hoje entendo ser uma qualidade natural, sempre presente e incontaminável da mente, o que chamo neste texto de “qualidade notante”. Descobri nela uma certa selvageria, ainda que um tanto suave pois descomplicada, que não se presta ao controle, especialmente ao meu controle. Ela ocorre sem qualquer esforço de minha parte e não posso, honestamente, dizer que ela sou eu. Para isso eu teria que postular um monte de palavras com referentes duvidosos e, sinceramente, todos elas seriam liberadas sem nenhuma dificuldade por ela.
Assim, então, encerro este texto fazendo uma homenagem a ela! Um salve para a clareza espontânea, não-fixada e imaculada da mente!
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